Querer versus poder, óticas filosóficas
Quem saberá o limite do que podemos fazer? Ninguém. Só há uma forma de realmente saber: tentar. E como tentar sem querer? O antônimo de querer é estar parado, morrer. Por isso diz-se que querer é poder. Pois com querer há poder possível, mas sem querer certamente não. Quem quer pode conseguir ou falhar. Quem não quer não consegue, ponto. Mas alto-lá. De que maneira o querer e o poder são reais frente a simplesmente o jeito como as coisas seguem?
A Primazia da Consciência: Querer é Poder
Na filosofia clássica ocidental, como no racionalismo, existem duas entidades básicas, dois tijolos a partir dos quais se constrói o entendimento de todas as coisas. Esses dois blocos são: Consciência e Existência. Simplificando, existe o “eu”, e existe o “mundo”. Eu e o mundo. As duas faces do universo.
“Penso, logo existo”, disse Descartes. Com isso ele conseguiu provar o primeiro bloco básico, a Consciência. O objetivo de Descartes era, usando a lógica, deduzir todo o universo. Mas ele encontrou um problema. Ele não conseguia provar, por lógica, que o restante do mundo existia. Ou seja, depois de chegar à sua famosa primeira conclusão, Descartes não conseguiu provar que coisa alguma existia além dele mesmo. Afinal, para concluir que o mundo existe é preciso partir dos sentidos da consciência — visão, audição, etc. Mas quem prova que nossos sentidos não nos enganam, que o mundo não é apenas uma construção mental, uma alucinação criada por nossos sentidos ou por nosso cérebro? É impossível distinguir. É impossível saber que nós não somos cérebros em vidros, sonhando uma ilusão de mundo. É impossível provar que nossas experiências todas não são falsas, como as de Neo no início do filme Matrix. Qualquer prova passará pela experiência dos sentidos, e nossos sentidos podem nos enganar como nos enganam o cinema e a televisão.
Descartes, Kant, e tantos outros filósofos, profissionais ou amadores, concluíram que não temos acesso à realidade mas apenas a fenômenos mentais. Se o mundo é uma imagem mental, a Existência, ou seja, tudo o que existe, está submetida, submissa, à Consciência. Segundo esse ponto de vista há a Consciência, em primeiro lugar, e dentro da Consciência (ou a partir da Consciência) há a Existência, toda ela. Tudo o que você acredita que existe existe em sua cabeça: o teclado, o monitor, o mouse, tudo dentro de sua cabeça. As outras pessoas, o cachorro, o passarinho, tudo o mais: dentro de sua cabeça é certo que estão, fora de sua cabeça incerto.
Ora, o querer é fruto puramente de nossa Consciência, e o poder é o limite que a realidade impõe ao querer. Nesse choque entre querer (Consciência) e poder (Existência/Realidade) o primeiro deverá sempre vencer: é o mais básico, o antecedente. Assim se conclui que querer é poder: a consciência é mais forte que a existência da realidade. Veja o mito Judaico-Cristão da origem do mundo. Primeiro existiu a consciência divina, primeiro existiu o querer. Então a partir dessa consciência teve lugar a existência: Deus criou o mundo em seis dias. Fiat Lux. Da consciência brotou a existência.
A Primazia da Existência: Querer não é Poder
A escritora Ayn Rand, que com seus livros criou um sistema filosófico conhecido como objetivismo discorda da primazia da Consciência. Pelo contrário, Ayn Rand diz, a Existência tem a primazia. Ela declara como primeiro axioma, o princípio antecedente a todos: “A Existência Existe”. “A é A”, diz ela, “uma pedra é uma pedra e não uma flor; uma coisa é o que é e não uma outra coisa; não se pode ter um bolo e comê-lo também. Essa é a lei da identidade. A Existência não é um conceito etéreo, de faz-de-conta, mas uma base firme para a epistemologia. A lei da não-contradição então é a forma epistemológica da lei da identidade: você não pode conhecer A sendo A e ao mesmo tempo conhecer A como sendo não-A. Duas afirmações mutuamente exclusivas não podem ser ambas verdadeiras ao mesmo tempo… Chegar a uma contradição é abdicar e sua própria mente, e fugir do reino da realidade.” (vide Atlas Shrugged.)
Segundo Ayn Rand a Existência e a Consciência são coordenadas, de tal forma que a existência, ou a realidade, é sempre o padrão pelo qual a validade de um julgamento da consciência é medido. Parece trivial, mas é preciso notar que daí se conclui que querer não é poder. Pois significa que o poder tem limites, o querer (ou consciência) se choca contra a realidade e a realidade (ou existência) tem primazia. Ilustrando, um selvagem anda pela encosta de uma montanha quando subitamente acontece uma gigantesca explosão e um vulcão entra em erupção. Ele nesse momento possui duas opções: reconhecer a realidade e fugir, ou se ajoelhar, fazer pensamento positivo, rezar, mentalizar que o problema não existe. De acordo com Ayn Rand a segunda atitude é um erro grave.
O criticismo da subjetividade cartesiana teve um expoente muito antes de Ayn Rand: o filósofo David Hume, que foi contemporâneo de Descartes. Humes argumentava que existiam apenas dois tipos de verdade revelada. Havia as “verdades da razão”, como 2+2=4. E havia as “constatações de fato”, como “a gralha no aviário do zoológico de Copenhagen é negra”. Questões que não se encaixavam nesses dois tipos (como “Será que existe um mundo externo ao ser?”) são irrespondíveis e sem significado, segundo Hume.
Não-dualidade: nem querer nem poder
A filosofia oriental, em especial o taoismo, reconhece o princípio da dualidade na natureza, dualidade básica do ying e do yang. A dualidade Existência x Consciência é uma de muitas. Dia e noite, masculino e feminino, prazer e dor. Cada um precisa do outro para ser. Mas nas religiões orientais há um estágio mais avançado de consciência a ser alcançado, além da dualidade do mundo. É o estado da iluminação ou transcendência, chamado Satori, pelos japoneses, Nirvana, pelos indianos. As culturas taoista, zen, budista, hinduista, todas elas mostram esse caminho de elevação da consciência por escapar da dualidade.
Nessa linha pode-se tentar compreender o mundo, o universo, como um só, inteiro e completo, e sem divisão (dualidade) entre o “eu” e o “mundo”. Ou seja, pode-se compreender que Existência e Consciência são na verdade uma coisa só.
O admirável escritor Raymond Smullyan, que além grande matemático e lógico se mostrou um grande estudioso de filosofia e religiões orientais, escreveu um ensaio com o título “Deixando as coisas seguirem seu próprio caminho” (em “The Tao is Silent“, não publicado em português). Nesse texto ele diz que há dois tipos de condutas pessoais no mundo. Os “quietistas” acreditam em “deixar as coisas seguirem seu próprio caminho, não interferir, não tentar ‘melhorar’ o mundo, não impor sua própria vontade na natureza, simplesmente aceitar as coisas à medida que elas chegam”. Os “ativistas”, ao contrário, “acreditam que o quietismo é o pior caminho possível, e responsável pela maior parte dos males do mundo” e que “depende de nós evitar que as coisas ruins do mundo aconteçam, a última coisa que devemos fazer é deixar as coisas seguirem o seu caminho.”
Ao fim de seu ensaio Smullyan conclui “eu vejo toda essa controvérsia entre o quietista e o ativista uma tola dualidade.” E ele continua explicando “eu tomo o ponto de vista de que a pessoa é parte da natureza (ou do universo, ou do cosmo, o que seja) ao invés de separada. Então suponha que eu tenha um desejo ardente de fazer certas mudanças no mundo. A não ser que eu positivamente e ativamente reprima esse desejo, eu irei em frente e farei essas mudanças. Mas não será o meu desejo de mudar, e portanto minhas mudanças, parte do jeito como as coisas seguem? Por outro lado se eu inibo meu desejo de fazer mudanças, e portanto não mudo nada, não é a minha inibição — e consequente inação — também parte do jeito como as coisas seguem? Como então eu posso não deixar as coisas seguirem seu próprio caminho, se o caminho que eu vou é parte do caminho que as coisas seguem?”
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